2008-01-20

Borrar a pintura

I - A pintura :

No papel pardo iam surgindo as ideias a lápis de cera...."De repente deixas de te ancorar nas profundezas do oceano, as ocultas profundezas do imenso abismo azul. Preferes a amarração metálica e ferrugenta de um qualquer porto. Está mesmo ali ao lado. Desvias o navio da rota ou arrancas-o mesmo ao seu sono contemplativo e lá vais direito ao molhe. Aí já não se encontra tanta paz, o mar bate enfurecido contra a terra seca, arrogante e invasora. E à qual te acabaste de prender, navio malfadado. Só uma coisa se mantém alegre, o sol brilha, não havia ainda chegado o Outono." ...

.... II - ...
O Porto era já ali, a umas jardas de distância.Certa noite dei comigo já na cidade. Andava em deambulações nocturnas a pé. Tinha comigo alguns objectos, levava-os num saco de plástico, creio que também numa mochila.
Interessava-me entrar nos edifícios. No centro da cidade cheguei a entrar no palácio da Bolsa, ou pelo menos, eu assim o pensava que fosse. O edifício antes da entrada, do lado de fora, tinha uma espécie de jardim que consistia num conjunto numeroso de pequenas torres de vidro fosco. Passei ao lado desse jardim e entrei. O edifício tinha as paredes branca, os tectos eram altos e estavam bem iluminados. Encontrava-me num hall amplo com duas escadarias dispostas simetricamente. Subi pela da direita.
Aqui e ali cruzava-me com os ocupantes do edifício, na sua maioria jovens de fato gravata, eles, e fato, elas. Falavam uns com os outros em pequenos grupos. Quando eu passava olhavam para mim de soslaio e não nos cumprimentávamos sequer. Este edifício tinha elementos decorativos e móveis muitos antigos abrangendo desde o ínicio século XVI ao XIX. Um que me chamou a atenção foi uma réplica de um que havia já visto em Lisboa. Na verdade, era a segunda unidade de um só par. Uma liteira real do século XVI cujas pegas tinham o formato de cabeças de crocodilo de dourada. Esta liteira estava numa varanda interior do do hall. Tenho alguém que me estava a observar ter comentado que era igual ao de Lisboa, adivinhando talvez a minha origem....
Continuei a minha caminhada saindo dali para fora. Fui-me afastando do centro. Com o tempo as ruas começaram a ser-me desconfortáveis até porque estava mais frio e as estradas atravessavam agora descampados. Andei até que entrei numa casinha térrea e isolada com fachadas de um inesperado estilo manuelino. Parecia tratar-se de uma pequena amostra de um palácio mostrando apenas uma janela, ainda que grande, deproporcional à pequena porta. Esta janela estava decorada com cordas e conchas esculpidas na pedra branca.
Uma vez lá dentro vi-me numa cozinha, pequena mas bem apetrechada. Pousei o meu saco e mochila e pegando numa alface comecei a lavá-la e a empilhar as suas folhas num alguidar azul. Estive assim entretido uns minutos, quando parei senti de novo um vazio e a angústia a invadirem-me. Irrequieto reparei que havia uma porta logo ao lado da cozinha por onde resolvi entrar. Aí estava uma cama de ferro encostada à parede com dois colchões e os lençóis postos. No chão ao lado da cama e por baixo desta tinham sido abandonados vários pares de sapatos. Dei por mim sentado num dos colchões, a afastar o outro desfazendo a cama e amarfanhando os lençóis. Comecei a espalhar distraídamente pelo chão os objectos que trazia no meu saco e mochila:Papéis, pequenos frascos de vidro, canetas, panos,...Peguei em alguns objectos que estavam no quarto e pus-me a observá-los, comparando-os com os meus. Resolvi começar a experimentar alguns sapatos. Pareciam ser todos mais pequenos que os meus, não os conseguia calçar como deve de ser. Inesperadamente consegui calçar umas botas tipo tropa com a minha medida. Às tantas comecei a recear que pudesse ser descoberto, aliás existia ainda outra divisão cuja porta estava fechada e da janela enorma que dava para a rua quem quer que passasse ali poderia ver-me. Tive mesmo de me encostar a uma das paredes quando um vulto se aproximou mais perto. Passado o susto arrumei as minhas coisas à pressa no saco deixando as que não eram minhas espalhadas como estavam pois não havia tempo. O alguidar com a alface lavada,por exemplo, ficara em cima da cama. Quando finalmente consegui sair da casa e dei a volta à casinha reparei que na divisão onde não havia entrado estava uma mulher com ar ataferadíssimo sentada à secretária e que consegui reconhecer mas de um modo muito vago. Sabia que a conhecia de me pedir que fizesse uns quadros com valores monetários descritos e representados graficamente. Pedia-me uns atrás dos outros, comparava-os, e depois pedia-me ainda que escrevesse sobre isso. Como era o meu trabalho e ela a chefe nesse trabalho eu não podia recusar. Afastei-me da casa com o passo cada vez mais apressado. A manhã chegava o que me dava uma sensação de alívio. Alívio muito efémero, era dia de trabalho, daqui a pouco teria de me apresentar naquela sala muito comprida em que eu me sentava num lugar de uma fila, de costas junto à parede com um computador à minha frente. À frente dessa secretária e de todas as outras havia uma sanita alta à qual baixando-se o tampo servia de banco. Nesse dia estava eu a trabalhar quando chega a chefe que eu vira na noite anterior, já vestida impecavelmente, senta-se no tampo de sanita da secretária ao lado da minha e diz uma simples frase com um sorriso carregado de significado, um misto de cumplicidade e repreensão, como só certas mulheres sabem fazer explorando, talvez, para domínios mais vastos as potencialidades da sua vocação maternal: "A minha casa está toda desarrumada". Após uma curta pausa para recuperar da surpresa eu retomo o discurso e em tom casual desenvolvo um pouco assunto, o tempo necessário apenas para inventar uma desculpa de que preciso de ir até outro departamento. Quando volto na esperança de já não a encontrar ali reparo que a chefe está sentada na minha secretária e baila-lhe outro sorriso nos lábios que eu não consigo interpretar de imediato. Só quando olho para a sanita é que reparo que o tampo está levantado e que a borda da sanita está suja de fezes. Desnecessariamente ela acrescenta abrindo mais o sorriso:
- Fiz merda!

2008-01-11

"...it lies"

- Já sei!, Salvador! Salvador não, Santiago!
- Não!....que tal simplesmente Luís?
- Luís!? Blaarghhh!...Luís, Lois, "Los"!, Lioz...
- "Lioz Santiago"?
- Rosa?!...
- Sim, é rosa. Há desde o branco ao rosa muito carregado há várias cores e outros nomes...
- Eu sei, também as vi. Uma vez, uma velhinha, ali no àtrio da estação de metro, é que me chamou a atenção. Era uma daquelas personagens que parecem ter sido arrancadas à história da cidade há uns setenta e tal anos atrás e colocadas ali de repente naquele mesmo instante, já envelhecidas pela viagem temporal, claro. Dei pela presença dela quando me falou, havia eu abrandado o passo para dobrar uma esquina.
- Já reparou? Os mosaicos de lioz! As cores! Estão todas baralhadas...! Branco, rosa claro, rosa escuro, tudo misturado sem ordem! - Observou-me ela indignada - Quem os mandou colocar devia de estar a dormir em pé!
- Sim, tem razão. - Consegui eu apenas balbuciar.

Passo regularmente naquela estação, e na verdade, desde então, não me lembro de ter de novo prestado atenção àquela desordendada matriz de cores.

Não dou importância, não tenho tempo...

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