2006-04-02

A HARPA

A HARPA

Era a vez do Luciano. Curvou-se, pôs o joelho em terra, e apontou o berlinde.
Atento, Júlio esperou. Mas o golpe demorava; Luciano parecia alhear-se cada vez mais da jogada, como se escutasse qualquer ruído distante. Acabou por erguer a cabeça.
Estrada abaixo, Lena corria de braços abertos. Vinha de sapatos pretos, meias pretas, bibe preto. E, sobre os cabelos claros, um grande laço preto. Toda ela vestia de luto carregado. Mas os seus movimentós eram leves e cheios de vivacidade. Passou, sentindo o prazer da corrida, airosa e veloz. O vento abriu-lhe o bibe e, por momentos, apareceu a descoberto o colo muito branco que formava com o rosto uma mancha alva no meio do luto.
— Parece uma andorinha — disse Júlio.
Os dois garotos iam virando a cabeça e seguiam-na com os olhos. Nenhum sabia ao certo se ela os vira, embora a ambos parecesse que Lena os havia olhado de soslaio.
Luciano continuava de joelhos no pó alvacento do largo. Sempre a correr, Lena ia agora saltando ora sobre um pé ora sobre o outro. Por fim, desapareceu na curva da rua, a caminho de casa da madrinha.
Luciano voltou-se. Apontou o berlinde entalado entre os dedos, desfechou o golpe, e falhou. Júlio preparava-se para jogar, quando Luciano levantou a pequena esfera e disse:
— Não jogo mais.
Júlio, já de joelho no chão, viu-o ir sentar-se à sombra. Aproximou-se:
— Ficaste zangado, hem?
— Eu?
— Pois! — acrescentou Júlio. — Ela passou sem olhar para ti.
— Quero lá saber disso!
— Então porque deixaste de jogar?
Luciano olhou-o de revés, por cima do ombro. Mas nada respondeu. Esticou as pernas, foi-se voltando, e acabou por ficar es-
tendido sobre o passeio, com o queixo encostado aos punhos.
Júlio curvou-se e começou a desenhar com o dedo sobre o pó do largo. Parecia comple tamente absorvido. Súbito a mão parou-lhe
— Não te percebo. Ela anda sempre à tua volta, e tu corres com ela; agora, que passou sem te olhar, ficaste danado.
— Fiquei nada! — cortou Luciano. Júlio sorriu com tristeza:
— Bem vi que ficaste.
Voltou a correr com os dedos sobre o pó
— Se fosse comigo, já eu a namorava.
— Tu?
— Sim... É bem bonita, a Lena...
Luciano ergueu o tronco, recolheu as pernas, e sentou-se:
— Se achas que ela é assim tão bonita, por. que é que não a namoras?
Júlio curvou-se ainda mais para o chão:
— Ela só gosta de ti...
— Quem te disse isso?
— Ninguém — respondeu Júlio, encolhendo os ombros. — Mas vê-se muito bem.
in - " O fogo e as cinzas" - Manuel da Fonseca

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